Veja a vida com outros olhos

Quando o termo “deficiência” é utilizado, para alguns, pode haver automaticamente uma associação ao nascimento, ou seja, determinada pessoa nasceu com alguma deficiência. Porém aos que podem intuitivamente pensar assim esquecem que qualquer indivíduo pode “estar” deficiente temporariamente quando quebra um braço ou uma perna por exemplo. Ou ainda os que se tornam deficientes permanentemente em alguma fase da vida devido alguma patologia ou acidente. Eu me encaixo neste último grupo, nasci com glaucoma congênito, e aos 28 anos perdi completamente a visão.
Ao nascer com uma doença como o glaucoma, instintivamente somos, ou pelo menos deveríamos ser conscientizados das chances de uma piora no quadro clínico, especificamente no meu caso a perda total da visão. Acredito ter sido muito bem preparado para isso pela franqueza e honestidade dos meus pais, mas nem toda preparação do mundo faz frente a dureza imposta pela realidade de ficar cego, em uma escuridão quase palpável.
Não quero aqui trazer um discurso vitimista, pois acho desprezível, também não quero dizer que uma pessoa que se torna deficiente no decorrer da vida sofre mais que outra que já nasceu assim ou ainda está nesta condição temporariamente. Definitivamente não! Todas essas situações são terríveis. Inclusive os que não tem deficiência alguma, cada um conhece suas dores e feridas, aquelas cicatrizadas e aquelas que por vezes ainda sangram. Mas o fato é que a partir deste ponto, eu estava cego! Em meio a Ascenção profissional, após recentemente ter constituído família e quando minha filha tinha apenas quatro anos de idade. Então precisaria reaprender a fazer várias atividades novamente, desde as mais simples e triviais até as mais detalhadas e complexas, de amarrar os sapatos a programar linhas de código, servir um copo de água a educar e proteger uma garotinha linda. Como?
Esse é o ponto aqui. Essa é a pergunta: Como?
Veja que quando questionamentos são bem feitos e os colocamos a prova por meio de um longo tempo de reflexão, podemos encontrar boas respostas. Percebemos que estas podem responder não apenas uma questão em específico, no meu caso como lidar com a perda da visão e recomeçar minha vida novamente, mas como talvez lidar com a perda de um modo geral, e é isso que me faz humildemente, compartilhar as respostas que encontrei.
Em primeiro lugar, a fé. Mas talvez esta seja uma questão muito íntima de cada indivíduo e não sei se este seria o melhor lugar para arrazoar sobre o tema sem que o meu interlocutor me tivesse dado tal permissão, por tanto vamos as outras duas respostas.
A segunda resposta, a família. Quando o diagnóstico final de que a minha perda da visão seria irreversível, eu não tinha mais forças para lutar por mim mesmo, não tinha mais ânimo para sequer me levantar da cama todas as manhãs. Mas minha família ainda estava lá, me apoiando, ajudando e incentivando em todos os momentos. Eles precisavam do pai, marido, amigo, companheiro e protetor, não que eu fosse e ainda não sou o melhor em cada um destes aspectos, mas eles me faziam ter certeza de que eles me queriam lá reassumindo estes papéis. Minha família foi o combustível que ardeu em meu coração e me fez sair da inércia existencial que eu me encontrava, sem dúvidas, eles foram a motivação que eu precisava, se dependesse apenas de mim mesmo, provavelmente não estaria aqui hoje.
Com o melhor incentivo que eu poderia ter comecei meu processo de reabilitação em uma instituição de apoio para deficientes visuais, onde tive suporte psicológico, aulas de braile, orientação e mobilidade com bengala, atividades de vida autônoma, tecnologias assistivas e até mesmo xadrez adaptado. Em meio a este processo tive a oportunidade de vivenciar experiências que nunca havia imaginado, conheci muitas pessoas, que em outras circunstâncias, provavelmente não as teria conhecido, pessoas incríveis, com histórias de vida parecidas com a minha e também outras muito diferentes, das mais variadas faixas etárias. Mas entre eles haviam pelo menos duas coisas que eram comum a todos: a deficiência visual e vontade de viver. Foi aí então, quase como que uma epifania, eu obtive a terceira resposta para a minha pergunta.
Enquanto houvesse folego de vida também haveria um universo de possibilidades. Eu havia perdido apenas uma função biológica do meu corpo, o que não deixou de ser uma perda onde precisei passar pelas fases de uma espécie de luto, mas eu ainda não tinha perdido minha vida. Aquelas pessoas que passei a conviver me ensinaram, mesmo que indiretamente, que era perfeitamente possível que um cego tivesse uma vida plena, pois ainda havia o folego de vida, o meu e de minha família, portanto ainda havia um universo de possibilidades, um universo de experiências novas, coisas para aprender e realizar, metas para atingir e toda uma vida para ser vivida.
Não acredito que as respostas que encontrei são as respostas certas para todas as questões difíceis da vida, muito menos que sirva para todos que passam por uma situação de perda, seria muita prepotência. Mas com certeza tem me ajudado a seguir em frente, e uma prova disso, foi quando a pouco tempo, brincando com minha filha, ela disse a frase que jamais sairá da minha memória: “Papai, as vezes eu até esqueço que você é cego”.
Em resumo, ao encontrar minhas respostas, tenho aprendido ver a vida com outros olhos.

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